segunda-feira, 26 de novembro de 2007

Se correr o bicho pega, se ficar...

ELE COME e fim de papo.

O bicho parece bonzinho, mas é devorador e diabólico. Está na cabeça e nas entranhas das pessoas; no mercado, na rua, na mídia, na empresa, na família... e adora também dar uma entrada nas igrejas. Atende por nomes diversos. Porém, um dos mais usados é neoliberalismo.

Tenho muito medo desse bicho. Ele vive matando. Prefere o sangue de crianças, trabalhadores, indígenas e pobres em geral. Seu lema é antigo e atual: “decifra-me ou devoro-te”. Sua base é o mercado. Seu negócio é vender. Para isso, trabalha com o desejo dos consumidores. “E quem pensa a partir do desejo nunca tem o suficiente”, explica o professor Jung Mo Sung. Entre os efeitos mais notórios do “bicho papão”, acham-se os seguintes:

1. Exclusão social: Cresce a categoria dos considerados “não gente”. Hoje, quem “não tem” poder econômico “não é”. Os excluídos não contam porque, ao sistema, nada acrescentam. Por esse motivo, são tratados como “coisas que falam”, expressão utilizada pelos romanos em se referindo aos escravos. Existiam “as coisas que falavam” e as “coisas que não falavam”. Escravos eram “coisas que falavam”, mas não eram escutados.

2. Culpabilização da vítima: O sistema leva você a acreditar que todo o fracasso é culpa sua. Quem não consegue competir, passa a pensar que ele é o incompetente e que sua incompetência tem um preço. Quem se sente culpado, habilita-se a aceitar que deve pagar uma pena. E, quem é penalizado constantemente vai perdendo a auto-estima e a dignidade. Quem perde a dignidade, passa a pensar que não têm direitos. E quem acha que não têm direitos, perde também a vontade de lutar.

3. Crescimento da violência: O fenômeno é complexo. A violência não se reduz a um impulso oriundo de quem tem fome e está sem “comida”. Entretanto, sem comida distribuída entre todos os que têm direito a sentir fome, não pode existir paz. Vale lembrar que, no mundo, de cada cinco pessoas, duas vivem com menos de R$ 6,00 por dia. As causas da violência são múltiplas, mas não podem ser ignoradas as de caráter socioeconômico.

4. Consumo ilimitado: O neoliberalismo cria símbolos e ídolos. O ídolo passa a estimular “desejos miméticos”. Instiga a querer o mesmo que o outro deseja. Assim, se fortalece a concorrência e a corrida ao consumo. Imprimir essa lógica nos indivíduos é tudo o que o sistema de mercado deseja. Se você entrar nesse esquema, o bicho já te pegou. Livrar-se dele não é tarefa fácil. Se, por um lado, há desejos que são necessidades e precisam ser satisfeitos; por outro, existem desejos que devem ser vigiados e controlados, pois são verdadeiros instintos do sistema.

5. Estresse globalizante: Hoje vivemos os efeitos de uma globalização sedentária. O capitalismo nos quer assim: não críticos e ativos, mas ativistas (ou desocupados) ingênuos. Enquanto fazemos coisas, não paramos para pensar. E se não paramos para pensar, não questionamos. Não questionar, é tudo o que ele espera. O ativismo tem seus agregados: a irritação, a angústia existencial, a tensão, a intolerância etc., levando à depressão, à doença e até a morte. De tudo é salutar livrar-se.

Para impedir que o “bicho” nos pegue e nos devore de vez é preciso prendê-lo pelos “chifres”. E não adianta ir sozinho, pois ele tem força. É fundamental resistir, articulando as múltiplas forças que desejam alcançar outros horizontes: da sociedade justa, solidária e sustentável.

Não podemos imitar o bicho que exclui, devora e depreda.

Se estivermos bem organizados, quem vai ter que correr é o bicho.

Podes crer!

Dirceu Benincá é doutorando em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP)

Um comentário:

Anônimo disse...

Excelente texto. O grande desafio é organizar um movimento capaz de enfrentar esse "bicho", já que essa organização requer uma mudança em nossa forma de pensar e agir, e o mundo nos transformou em pessoas acomodadas com o sistema.
Acredito que o primeiro passo seria a conscientização de que existe outra "vida" e que somos capazes de lutar por ela.