terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

Como superar a lógica esquemática das esquerdas

O atual governo e suas políticas são inimigos do avanço das esquerdas e das verdadeiras transformações sociais

O governo Lula corrói a esquerda silenciosamente, por dentro, nas entranhas, como o câncer. É diferente do que acontece quando se tem a luta aberta contra a direita, quando é possível identificar mais claramente os inimigos. Dizer o óbvio, que a direita é mais truculenta do que a geléia geral do governo Lula, não contribui para definir a tática da esquerda. A geléia geral é sim menos truculenta, mas é mais danosa na medida em que age no interior das fileiras da esquerda, divide as forças, acomoda, corrompe, coopta, quebra a capacidade crítica e a combatividade. A direita no governo é mais dura nas bordoadas, mas causa menos danos à essência dos compromissos políticos e éticos da esquerda.

O raciocínio esquemático de setores da esquerda costuma enfatizar que fazer oposição ao governo Lula é apostar no pior, e que o pior só favorece os inimigos da esquerda. De acordo com esse raciocínio, é preferível engolir o governo Lula e a política hegemônica do PT do que entregar o governo para o PSDB-DEM e caterva. Se os inimigos verdadeiros são o capital, a burguesia e seus representantes, no momento atual a situação é altamente favorável aos inimigos, já que o modelo econômico mantido pelo governo Lula – e os grandes negócios do Estado com o empresariado – tem permitido a mais estupenda acumulação, total liberdade de atuação, entrega dos recursos naturais e do patrimônio nacional – praticamente sem restrições.

Nunca o capital viveu uma situação tão vantajosa nos mais de cem anos de República. Além disso, contribui para deixar o inimigo à vontade o fato real e concreto de que a força hegemônica nas esquerdas, o PT, consente com as políticas do governo Lula e não oferece nenhuma resistência à espoliação capitalista. O capital está nadando de braçada justamente porque a esquerda dividida fornece um ambiente de “tranqüilidade e paz” para o avanço do capital sobre as forças do trabalho.

O raciocínio político que precisa ser colocado na conjuntura não pode ser obviamente em cima das eventuais benesses – circunstanciais e passageiras – proporcionadas pelo atual governo. Mesmo porque não existe nada sob controle no jogo eleitoral. Essa visão é essencialmente fisiológica, na medida em que contempla vantagens e desvantagens da atual aliança com o capital, seja nas políticas assistencialistas, na suposta contenção da selvageria ou nas inúmeras sinecuras a setores da militância antes ignorados e excluídos. Não dá para confundir estratégia política com lealdade e gratidão.

O que precisa ser verificado realmente é a análise se tais ações de governo contribuem ou não para a organização e o acúmulo de forças no campo popular e das esquerdas. E está claro, até o presente momento, desde 1º de janeiro de 2003, que o governo do PT com as forças conservadoras e de direita tem contribuído muito mais para reorganizar esses setores dominantes, revitalizar antigas oligarquias, vitaminar os grupos empresariais – do que fortalecer o outro lado.

Pela lógica dos amigos e inimigos, podemos afirmar que o atual governo e suas políticas são inimigos do avanço das esquerdas e das verdadeiras transformações sociais. É claro que no balanço das relações clientelistas com a sociedade, o atual governo tem ampla vantagem em relação aos anteriores. Mas no processo de lutas de médio e longo prazo, o atual governo é mais corrosivo do que uma eventual articulação das esquerdas para o enfrentamento aberto contra as forças do capital.

A reunificação e o avanço das forças de esquerda, com o respaldo do movimento social popular, só pode acontecer no momento de convergência da análise centrada no combate às oligarquias, ao capital e ao imperialismo; na proposta de construção de uma nova sociedade sem oprimidos e sem explorados. Se o governo federal não soma nesse processo, não viabiliza avanços contra os verdadeiros inimigos do povo brasileiro, o terreno da luta e da aglutinação só são possíveis no campo da oposição. Fazer oposição ao governo, portanto, não é escolher o pior, é impedir que o pior continue inviabilizando a articulação de forças no campo das esquerdas, é estabelecer uma fronteira clara – para ser facilmente identificada pelo povo – entre aquilo que fortalece o modelo hegemônico do capital e o que constitui a alternativa nacional, popular e socialista.
Não dá mais para ficar jogando fumaça no quadro político. O caminho precisa ganhar nitidez.

Hamilton Octavio de Souza é jornalista e professor da PUC-SP.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

Panem et circenses

O POETA latino Juvenal dedicou essas palavras de amargo desprezo àqueles romanos que, em plena decadência do Império, no início da nossa era, dirigiam-se ao Foro apenas para pedir trigo e espetáculos gratuitos, ou seja, “pão e circo”. A velha máxima consagrada em suas Sátiras parece ser o lema adotado pelos políticos de Bruzundangas já há algumas décadas, mas sob a batuta de Lulinha Paz & Amor, o bordão se impôs de modo cabal e irreversível.

Enquanto o agronegócio expulsa os lavradores do campo e o sistema financeiro abarrota os cofres com lucros astronômicos, o governo federal se incumbe das políticas compensatórias, como a badalada “Bolsa-Família”, ou seja: Brasília se ocupa do pão dormido que aplaca a miséria nos grotões e favelas da pátria-mãe.

Quanto ao circo, há picadeiros e eventos de sobra nestas plagas. Sem falar nos palhaços, como o ‘democrata’ César Maia. Embora o PAN-2007 - verdadeira farra do boi para empresas, empreiteiras e “autoridades” - não tenha solucionado um único problema de infra-estrutura no Rio de Janeiro, o alucinado prefeito, com uma desfaçatez inigualável, ousou declarar que “acumulamos muito em termos de segurança” no Estado. Assim, em meio a balas perdidas e com o país imerso em vários escândalos de corrupção, a saúde pública entregue ao deus-dará (e aos mosquitos...) e a tragédia urbana esgarçando cruelmente nossas tênues estruturas sociais, assistimos há poucos meses à bizarra cerimônia de anúncio do Brasil como sede da Copa do Mundo de 2014, para delírio dos cartolas da CBF e da tchurma da Rede Globo, para quem o Brasil é um país de mentirinha que lhes rende milhões de dólares & euros bem reais.

Os mais otimistas insistem na tese de que sempre herdaremos alguns “equipamentos” e benefícios com tais iniciativas espetaculares. Suponhamos que seja verdade: como impulsionar essa máquina, se os nossos jovens continuam a receber a pior educação formal da América Latina? Como diria um cronista esportivo mais arguto, “de que adianta o computador na sala de aula, se o professor é semi-analfabeto?”

Como, no entanto, o show não pode parar, nossos protestos se diluem em meio ao verdadeiro frenesi midiático com que somos bombardeados dia após dia na província. As últimas notícias - e imagens -, por sinal, são de dar náusea a qualquer cidadão decente deste país: à frente do Comitê Olímpico Internacional, lá estão eles, os membros da comitiva que viajou à Suíça (Arthur Nuzman, o presidente do COB, o governador Sérgio Cabral, o secretário Eduardo Paes & cia) com os documentos da candidatura do Rio para sediar as Olimpíadas 2016. Pouco importa se esta é a quarta vez que o país pleiteia sua vaga no grande circo olímpico e que, nas três vezes anteriores, jamais tenha superado a primeira fase do processo de escolha. O time é mesmo da fuzarca: sorriem com gosto e unem suas mãos como se fossem os novos mosqueteiros, a celebrar a típica novela de capa & espada tropical - “um por todos e todos contra o povo!”

Foram até a Europa para levar um dossiê que poderia ser remetido por mera via postal, como fizeram os governantes de Chicago, Tóquio, Madri, Praga, Doha (Qatar) e Baku (Azerbaijão). Hospedaram-se em hotel luxuoso, cuja diária mais barata custa R$ 676,00. E, obviamente, sequer se preocuparam com o orçamento final da campanha, cuja previsão inicial é de US$ 42 milhões, a ser dividido pelas três esferas do poder público - Prefeitura, Estado e União - em partes iguais, o que faz tremer o contribuinte (sobre quem, afinal, recaem todos os custos das orgias oficiais).

Lembro-me de Juvenal e constato que o mundo está mesmo de pernas pro ar: afinal de contas, essa gente deveria estar no Coliseu romano, entregue aos leões, para deleite dos plebeus pós-modernos.

Panem et circenses...

Luiz Ricardo Leitão é escritor e professor adjunto da UERJ. Doutor em Literatura Latino-americana pela Universidade de La Habana, é autor de Lima Barreto: o rebelde imprescindível (Editora Expressão Popular).

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

Políticas sociais ainda engatinham

BEM-ESTAR Estudo do Ipea conclui que programas do governo são insuficientes, mas ação do Estado é essencial para a população

EM UM país onde, em média, 32% do orçamento da União é destinado ao pagamento da dívida pública e apenas 5% vai para Saúde, 2% para Educação e 0,3% para reforma agrária, não é de se estranhar que os avanços das políticas públicas ainda engatinhem. Essa é uma das conclusões que podem ser aferidas com base em estudo realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea).

Semestralmente, o órgão publica o Boletim de Políticas Sociais – Acompanhamento e Análise, trazendo um conjunto de informações que, como explica Luseni Aquino, pesquisadora, faz um balanço do semestre anterior das ações do governo federal na área social.

Apesar de ressaltar a dificuldade de se fazer uma análise abrangente do desempenho das políticas públicas ao longo dos sete anos em que o estudo vem sendo elaborado, Luseni acredita que, à despeito de um cenário bastante desfavorável economicamente, e também ideologicamente, “por conta de uma visão de que o Estado deve ter um papel menor na área social”, houve uma efetiva expansão da proteção social nesse período.

“Saímos de um sistema de proteção ainda em montagem e hoje temos algo robusto. Houve ampliação dos direitos sociais dos brasileiros. Acredito que está comprovada a eficiência da política social pública como combate à pobreza”, avalia. Sem a ação do Estado, ou seja, sem a execução de políticas públicas, por mais deficientes que ainda sejam, não seria possível observar uma melhora na área social, mesmo que tímida.

Dentre os limites de atuação apontados pela pesquisadora estão os modelos de gestão e o limite orçamentário. “Um desafio geral para todas as áreas é o aprimoramento dos mecanismos de gestão, com mais descentralização, participação social, criação e fortalecimento de conselhos. Tudo isso vem operando, mas ainda carece de alguns aprimoramentos”, aponta.

Um exemplo pode ser verificado nos movimentos populares por moradia que procuram, por meio de mutirões, construir suas próprias habitações, obtendo resultados qualitativos e de preço melhores do que casas construídas por grandes empreiteiras. Entretanto, na maioria das vezes, esbarram em burocracias e não conseguem efetivar sua participação.

Educação
Grande parte do estudo se dedica a avaliar a área de educação. O relatório aponta que, desde 2004, as regiões Sul e Sudeste vêm registrando reduções no total de matrículas para o ensino médio. A queda foi compensada, naquele ano, pelo crescimento das demais regiões. Porém, em 2005, o movimento expansionista nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste não foi suficiente para fazer frente às 200 mil matrículas subtraídas aos sistemas educacionais do Sul e do Sudeste.

Entre as causas do cenário descrito acima, uma situação recorrente no país: ingresso prematuro no mercado de trabalho e a queda continuada no total de concluintes do ensino fundamental. Por outro lado, cresce o interesse e o investimento em programas de alfabetização como o Educação de Jovens e Adultos (EJA). Em 2006, o programa apoiou a oferta de vagas para 3,3 milhões de alunos matriculados. Cerca de 1,6 milhão concluem.

“Em que pese serem números expressivos, persistem os problemas, sobretudo no atual processo de alfabetização. Estes revelam-se pela baixa efetividade na redução do analfabetismo no país, onde a relativa estabilidade dos indicadores de resultado sugere que as ações do programa não parecem alcançar a população analfabeta e que mudanças para engajar esse público-alvo permanecem necessárias”, destaca o relatório.

O estudo também aponta o descompasso entre o ensino médio e o superior. Em 2005, as instituições de ensino superior (IES) públicas ofertaram 313 mil vagas, enquanto os diplomados no ensino médio, no ano anterior, somaram quase 1,9 milhão.
Dafne Melo

Os brancos são mais iguais

O LEMA fundamental da dominação capitalista e imperialista continua sendo “Civilização ou barbárie”. Civilização para os dominantes e barbárie para todos os outros. Civilização para os brancos, ocidentais, protestantes ou católicos, europeus ocidentais ou estadunidenses.

Mas é a cor da pele a bandeira da sua superioridade.

Não por acaso, Hollywood, a maior fábrica de racismo do mundo, promove a criminalização das outras “raças”, sejam índios dos EUA, os africanos, árabes, japoneses, chineses, coreanos, mexicanos ou qualquer outra variante dos não-brancos. O único filme produzido nos EUA contra a potência que promoveu a maior “limpeza étnica” da história da humanidade, a Alemanha, foi realizado por um não-estadunidense, Charles Chaplin, com “O grande ditador”. O clima contra ele ficou tão insuportável que precisou sair às pressas dos EUA antes mesmo do lançamento do filme.

Hollywood narrou a história do massacre das populações indígenas nos EUA como uma saga da “civilização”, resgatando palmo a palmo o território dominado por “peles vermelhas “traiçoeiros”. Indômitos cowboys, chamados de “mocinhos”, enfrentando os “bandidos” das populações originárias. Recorrentemente, renascem as teorias e as afirmações racistas sobre a suposta inferioridade intelectual dos negros. Bem antes das declarações do prêmio Nobel sobre o tema, surgiu a “teoria dos sinos”, que repetia a mesma ladainha de sempre.

Os negros teriam características que os tornam excelentes para as atividades atléticas. Chega-se ao requinte de elaborar mapas da origem dos africanos, pois certas regiões estariam mais adaptadas para a produção de atletas para corridas de longas distâncias, pela resistência, enquanto, outras, produzem os de curta distância, pela rapidez. Este reconhecimento do desempenho atlético é uma espécie de “compensação” à inferioridade intelectual que se lhes querem impor. Um autor que vive recomendando as melhores leituras para todo o mundo, não hesitou em perguntar onde estaria o Shakespeare africano. Um modo de dizer que só está disposto a rever sua tese sobre a inferioridade intelectual e cultural dos africanos quando estes forem capazes de apresentar conquistas intelectuais similares às européias.

A colonização e a escravidão, que parecem fenômenos passageiros, que não deixaram marcas na trajetória nem dos que enriqueceram, nem dos que empobreceram com elas, nunca aparecem nos seus preciosos “cálculos” . Colonização e escravidão foram formas de recrutar uma raça inferior para trabalhar para a raça superior, em nome do “progresso” e do “desenvolvimento”. Colonização e escravidão transformam- se em categorias atemporais que beneficiaram a “humanidade”, a “civilização”, apropriada pelos brancos ocidentais cristãos.

Esses raciocínios pseudo-científicos procuram desqualificar as outras etnias e combater algumas conquistas políticas, como é o caso especialmente das cotas. Afinal, de que adianta promover os negros, já que sua inferioridade é genética! Quando esta concepção ganhou a Califórnia, o resultado foi arrasador para os negros, pois os brancos e os de origem asiática repartiram entre si as vagas das universidades e os negros foram praticamente excluídos. É uma manobra intelectual para justificar a imposição da hegemonia das idéias dominantes na sociedade mercantilizada dos EUA: os pobres – entre eles os negros - não são produzidos pela estrutura econômica e social capitalista, eles são os “perdedores” de um jogo no qual tiveram as mesmas oportunidades que os outros, mas foram vencidos no concurso meritocrático da excelência, da produtividade, do custo-benefício.

Todos são iguais, mas os brancos são os mais iguais, os mais “civilizados”, os mais inteligentes – e mais ricos, mais poderosos, mais beligerantes, os mais agressivos, os mais discriminadores, os mais exploradores.
Emir Sader é professor de sociologia na Universidade Estadual do Rio de Janeiro

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

Homem Na Estrada

Ainda que a pena de prisão perpétua seja proibida constitucionalmente, será que não é o que acontece aqui no Brasil?!?

Um homem na estrada recomeça sua vida.
Sua finalidade: a sua liberdade.
Que foi perdida, subtraída;
e quer provar a si mesmo que realmente mudou, que se
recuperou e quer viver em paz, não olhar
para trás, dizer ao crime: nunca mais!
Pois sua infância não foi um mar de rosas, não.
Na Febem, lembranças dolorosas, então. Sim, ganhar
dinheiro, ficar rico, enfim.
Muitos morreram sim, sonhando alto assim, me digam
quem é feliz, quem não se desespera, vendo
nascer seu filho no berço da miséria.
Um lugar onde só tinham como atração, o bar, e o
candomblé pra se tomar a benção.
Esse é o palco da história que por mim será contada.
...um homem na estrada.

Equilibrado num barranco incômodo, mal acabado e sujo,
porém, seu único lar, seu bem e seu
refúgio.
Um cheiro horrível de esgoto no quintal, por cima ou
por baixo, se chover será fatal.
Um pedaço do inferno, aqui é onde eu estou.
Até o IBGE passou aqui e nunca mais voltou. Numerou os
barracos, fez uma par de perguntas.
Logo depois esqueceram, filhos da puta!
Acharam uma mina morta e estuprada, deviam estar com
muita raiva.
"Mano, quanta paulada!".
Estava irreconhecível, o rosto desfigurado.
Deu meia noite e o corpo ainda estava lá, coberto
com lençol, ressecado pelo sol, jogado.
O IML estava só dez horas atrasado.
Sim, ganhar dinheiro, ficar rico, enfim, quero que meu
filho nem se lembre daqui, tenha uma vida
segura.
Não quero que ele cresça com um "oitão" na cintura e
uma "PT" na cabeça.
E o resto da madrugada sem dormir, ele pensa
o que fazer para sair dessa situação.
Desempregado então.
Com má reputação.
Viveu na detenção.
Ninguém confia não.
...e a vida desse homem para sempre foi danificada.
Um homem na estrada...
Um homem na estrada..

Amanhece mais um dia e tudo é exatamente igual.
Calor insuportável, 28 graus.
Faltou água, ja é rotina, monotonia, não tem prazo pra
voltar, hã! já fazem cinco dias.
São dez horas, a rua está agitada, uma ambulância foi
chamada com extrema urgência.
Loucura, violência exagerada. Estourou a própria mãe,
estava embriagado.
Mas bem antes da ressaca ele foi julgado.
Arrastado pela rua o pobre do elemento, o
inevitável linchamento, imaginem só!
Ele ficou bem feio, não tiveram dó.
Os ricos fazem campanha contra as drogas e falam sobre
o poder destrutivo delas.
Por outro lado promovem e ganham muito dinheiro com o
álcool que é vendido na favela.

Empapuçado ele sai, vai dar um rolê.
Não acredita no que vê, não daquela maneira,
crianças, gatos, cachorros disputam palmo a palmo seu
café da manhã na lateral da feira,
Molecada sem futuro, eu já consigo ver, só vão na
escola pra comer,
Apenas nada mais, como é que vão aprender sem
incentivo de alguém, sem orgulho e sem respeito,
sem saúde e sem paz.
Um mano meu tava ganhando um dinheiro,
tinha comprado um carro,
até rolex tinha!
Foi fuzilado a queima roupa no colégio, abastecendo a
playboyzada de farinha,
Ficou famoso, virou notícia, rendeu dinheiro aos
jornais, hu!, cartaz à policia
Vinte anos de idade, alcançou os primeiros lugares...
superstar do notícias populares!
Uma semana depois chegou o crack, gente rica por trás,
diretoria.
Aqui, periferia, miséria de sobra.
Um salário por dia garante a mão-de-obra.
A clientela tem grana e compra bem, tudo em casa,
costa quente de sócio.
A playboyzada muito louca até os ossos!
Vender droga por aqui, grande negócio.
Sim, ganhar dinheiro ficar rico enfim,
Quero um futuro melhor, não quero morrer assim,
num necrotério qualquer, como indigente, sem nome e
sem nada,
o homem na estrada.

Assaltos na redondeza levantaram suspeitas,
logo acusaram a favela para variar,
E o boato que corre é que esse homem está, com o seu
nome lá na lista dos suspeitos,
pregada na parede do bar.

A noite chega e o clima estranho no ar,
e ele sem desconfiar de nada, vai dormir
tranquilamente,
mas na calada caguentaram seus antecedentes,
como se fosse uma doença incurável, no seu braço a
tatuagem, DVC, uma passagem, 157 na lei...
No seu lado não tem mais ninguém.

A Justiça Criminal é implacável.
Tiram sua liberdade, família e moral.
Mesmo longe do sistema carcerário, te chamarão para
sempre de ex presidiário.
Não confio na polícia, raça do caralho.
Se eles me acham baleado na calçada, chutam minha cara
e cospem em mim é..
eu sangraria até a morte...
Já era, um abraço!.
Por isso a minha segurança eu mesmo faço.

É madrugada, parece estar tudo normal.
Mas esse homem desperta, pressentindo o mal, muito
cachorro latindo.
Ele acorda ouvindo barulho de carro e passos no
quintal.
A vizinhança está calada e insegura, premeditando o
final que já conhecem bem.
Na madrugada da favela não existem leis, talvez a lei
do silêncio, a lei do cão talvez.
Vão invadir o seu barraco, é a polícia!
Vieram pra arregaçar, cheios de ódio e malícia, filhos
da puta, comedores de carniça!
Já deram minha sentença e eu nem tava na "treta", não
são poucos e já vieram muito loucos.
Matar na crocodilagem, não vão perder viagem, quinze
caras lá fora, diversos calibres, e eu apenas
com uma "treze tiros" automática.
Sou eu mesmo e eu, meu deus e o meu orixá.
No primeiro barulho, eu vou atirar.
Se eles me pegam, meu filho fica sem ninguém, e o que
eles querem: mais um "pretinho" na febem.
Sim, ganhar dinheiro ficar rico enfim, a gente sonha a
vida inteira e só acorda no fim, minha verdade
foi outra, não dá mais tempo pra nada... bang! bang!
bang!

Homem mulato aparentando entre vinte e cinco e trinta
anos é encontrado morto na estrada do
M'Boi Mirim sem número.
Tudo indica ter sido acerto de contas entre quadrilhas
rivais.
Segundo a polícia, a vitíma tinha vasta ficha
criminal."

Racionais Mc's
Mano Brown

Racismo É Burrice

Salve, meus irmãos africanos e lusitanos, do outro lado
do oceano
"O Atlântico é pequeno pra nos separar, porque o
sangue é mais forte que a água do mar"
Racismo, preconceito e discriminação em geral;
É uma burrice coletiva sem explicação
Afinal, que justificativa você me dá para um povo que
precisa de união
Mas demonstra claramente
Infelizmente
Preconceitos mil
De naturezas diferentes
Mostrando que essa gente
Essa gente do Brasil é muito burra
E não enxerga um palmo à sua frente
Porque se fosse inteligente esse povo já teria agido
de forma mais consciente
Eliminando da mente todo o preconceito
E não agindo com a burrice estampada no peito
A "elite" que devia dar um bom exemplo
É a primeira a demonstrar esse tipo de sentimento
Num complexo de superioridade infantil
Ou justificando um sistema de relação servil
E o povão vai como um bundão na onda do racismo e da
discriminação
Não tem a união e não vê a solução da questão
Que por incrível que pareça está em nossas mãos
Só precisamos de uma reformulação geral
Uma espécie de lavagem cerebral
Racismo é burrice
Não seja um imbecil
Não seja um ignorante
Não se importe com a origem ou a cor do seu
semelhante
O quê que importa se ele é nordestino e você não?
O quê que importa se ele é preto e você é branco
Aliás, branco no Brasil é difícil, porque no Brasil
somos todos mestiços
Se você discorda, então olhe para trás
Olhe a nossa história
Os nossos ancestrais
O Brasil colonial não era igual a Portugal
A raiz do meu país era multirracial
Tinha índio, branco, amarelo, preto
Nascemos da mistura, então por que o preconceito?
Barrigas cresceram
O tempo passou
Nasceram os brasileiros, cada um com a sua cor
Uns com a pele clara, outros mais escura
Mas todos viemos da mesma mistura
Então presta atenção nessa sua babaquice
Pois como eu já disse racismo é burrice
Dê a ignorância um ponto final:
Faça uma lavagem cerebral
Racismo é burrice
Negro e nordestino constróem seu chão
Trabalhador da construção civil conhecido como peão
No Brasil, o mesmo negro que constrói o seu
apartamento ou o que lava o chão de uma delegacia
É revistado e humilhado por um guarda nojento
Que ainda recebe o salário e o pão de cada dia graças
ao negro, ao nordestino e a todos nós
Pagamos homens que pensam que ser humilhado não dói
O preconceito é uma coisa sem sentido
Tire a burrice do peito e me dê ouvidos
Me responda se você discriminaria
O Juiz Lalau ou o PC Farias
Não, você não faria isso não
Você aprendeu que preto é ladrão
Muitos negros roubam, mas muitos são roubados
E cuidado com esse branco aí parado do seu lado
Porque se ele passa fome
Sabe como é:
Ele rouba e mata um homem
Seja você ou seja o Pelé
Você e o Pelé morreriam igual
Então que morra o preconceito e viva a união racial
Quero ver essa música você aprender e fazer
A lavagem cerebral
Racismo é burrice
O racismo é burrice mas o mais burro não é o racista
É o que pensa que o racismo não existe
O pior cego é o que não quer ver
E o racismo está dentro de você
Porque o racista na verdade é um tremendo babaca
Que assimila os preconceitos porque tem cabeça fraca
E desde sempre não pára pra pensar
Nos conceitos que a sociedade insiste em lhe ensinar
E de pai pra filho o racismo passa
Em forma de piadas que teriam bem mais graça
Se não fossem o retrato da nossa ignorância
Transmitindo a discriminação desde a infância
E o que as crianças aprendem brincando
É nada mais nada menos do que a estupidez se
propagando
Nenhum tipo de racismo - eu digo nenhum tipo de
racismo - se justifica
Ninguém explica
Precisamos da lavagem cerebral pra acabar com esse
lixo que é uma herança cultural
Todo mundo que é racista não sabe a razão
Então eu digo meu irmão
Seja do povão ou da "elite"
Não participe
Pois como eu já disse racismo é burrice
Como eu já disse racismo é burrice
Racismo é burrice
E se você é mais um burro, não me leve a mal
É hora de fazer uma lavagem cerebral
Mas isso é compromisso seu
Eu nem vou me meter
Quem vai lavar a sua mente não sou eu
É você.
Gabriel O Pensador

A nova tentação da eugenia

As afirmações racistas dos cientistas James Watson e Charles Murray deveriam disparar um sinal de alerta. Em sociedades hierarquizadas, é cômodo enxergar na suposta "fraqueza" do oprimido a causa da desigualdade. No Brasil, isso sempre foi o primeiro passo para ampliar a discriminação e exclusão

O geneticista norte-americano James Watson, considerado pai da biologia molecular e quem desvendou a dupla hélice do DNA, afirmou recentemente, sem bases científicas, o mito racista de que os povos da África são menos inteligentes em comparação aos do hemisfério Norte. Sua declaração foi recebida com duras críticas pela maioria da intelectualidade internacional, o que o obrigou a escrever um artigo de retratação. Entretanto, suas desculpas tiveram caráter apenas formal, pois no mesmo artigo ele afirma: “Eu sempre defendi que nós devemos basear nossa visão do mundo no nosso conhecimento, nos fatos, e não naquilo que gostaríamos que fosse”.
Dias depois, Charles Murray, cientista político norte-americano e autor do livro The Bell Curve (A Curva do Sino, Free Press, 1994), saiu na defesa das idéias de Watson. No seu livro, afirma que testes de QI (quoficiente de inteligência) apontavam que há diferenças entre raças, com brancos saindo-se em média melhor do que negros. Além de ressaltar a precariedade do testes de QI, que tentam quantificar a subjetividade da inteligência, não podemos considerar as teses de Watson e Murray como novas. Esta insistente defesa de diferenças entre a raça humana, tem reaparecido com certa rotina, tanto no debate científico quando na política

Durante a campanha eleitoral deste ano na Suíça, a UDC (União Democrática do Centro, partido da direita nacionalista), utilizou em campanha um cartaz que representa uma ovelha negra sendo expulsa por ovelhas brancas. Transmitiu deliberadamente uma mensagem racista, num país que sempre reivindicou a defesa dos direitos humanos.

No Brasil, o governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, reavivou velhas feridas históricas, ao declarar que é favorável ao aborto como forma de controle da violência e que as mulheres grávidas das favelas são “fabricas de marginais”. Por lançar declarações polêmicas e se referir às teses do livro Freakonomics, que segue a velha fórmula da antropologia criminal de Cesare Lombroso (1835-1909), Cabral pisou em terreno perigoso e colocou em risco seu histórico democrático. De quebra, fez coro com as declarações e ações racistas pelo mundo.

Da crença nas habilidades "raciais" à tentativa de tornar o Brasil europeu

A tentativa de explicar e classificar as diferenças entre culturas e povos foi uma tendência marcante do cientificismo e do positivismo no século 19. Primo de Charles Darwin e descobridor das impressões digitais humanas, o antropologista Francis Galton (1822 – 1911) cunhou o termo ideologia eugênica, em seu livro intitulado Inquires into human faculty, de 1883. Lecionou na universidade de Londres, realizou muitos estudos em conjunto com seu primo sobre antropologia, QI humano, doenças físicas e mentais possivelmente herdadas.

Como descreve de forma brilhante Nancy Leys Stepan, em The Hour of Eugenics, a ação dos eugenistas na América Latina parte da aplicação e difusão dos conceitos de Galton afirmava que as habilidades naturais dos homens são derivadas por herança. O raciocínio eugênico argumenta que para obter "boas" raças de cachorro ou cavalos basta realizar uma seleção permanente de espécimes que possuem, por exemplo, um peculiar poder para correr. As características serão mantidas por gerações. Portanto, se mulheres de boa raça se casarem com homens de boa raça, poderemos obter boas raças em gerações seqüenciais. (Stepan, 1991)

No Brasil a eugenia teve grande importância no pensamento hegemônico que fundou as bases do Estado moderno no final do século 19 e durante a primeira metade do século 20. Em certa medida, o movimento higienista e sanitarista, que teve Osvaldo Cruz (1872-1917) como um de seus principais defensores, foi incorporado oficialmente ao Estado em 1903. Nomeado pelo presidente Rodrigues Alves para a direção do serviço de saúde pública do Rio de Janeiro, seu pensamento e ordens deram suporte para o surgimento, em 1917, do pensamento eugênico no Brasil, por meio do médico Renato Kehl.

O higienismo de Osvaldo Cruz foi ideologicamente incorporado pela eugenia de Kehl, incorpando e consolidando as teses racistas na superestrutura do Estado brasileiro, reforçando a brutal exclusão econômica promovida contra a população negra, mestiça e indígena em favor de um clareamento do fenótipo brasileiro e a conseqüente aproximação do ideal republicano europeu.

Como se a favela, "criadouro de pobres e de vícios" fosse a causa de nossos males sociais
A visão criminalizante usada por Sérgio Cabral para defender a legalização do aborto como forma de prevenir a criminalidade e a violência, promove uma confusão dentro do debate sobre o próprio aborto, que deve ser tratado no campo da saúde pública e como problema da sociedade brasileira.

Outro personagem brasileiro que acaba fazendo eco numa proporção menor, é o médico Drauzio Varella. No dia 14.04.2007, publicou, na Folha de S.Paulo um artigo intitulado Tal qual avestruzes, no qual resgata uma resolução da World Scientific Academies, de 1993, que afirma: “A humanidade se aproxima de uma crise. Durante o tempo de duração da vida de nossos filhos, nosso objetivo deve ser o de atingir crescimento populacional igual a zero”.
Em um dos artigos, intitulado Os filhos deste solo, ele aponta uma visão determinista, condena a pobreza à não reprodução e evoca conceitos elaborados por Malthus, como a teoria da taxa de reposição - quando afirma que Para manter constante a população de um país, cada casal deveria ter dois filhos. Um para substituir a mãe quando ela morrer, e outro para substituir o pai. É a chamada "taxa de reposição".

O paradigma malthusiano [1] apresentou um bode expiatório - o crescimento ilimitado da população - para explicar a fome, as guerras e os vícios. Varella segue a mesma receita. Usa os gráficos de crescimento populacional brasileiro que apontam uma taxa média de filhos por família de 6,3 em 1950, contra 2,3 em 2000 (IBGE, 2000). Ele questiona a média e os dados dizendo: “No Brasil, há 40 anos, cada família tinha, em média, seis filhos. Hoje, as estatísticas mostram que estamos muito próximos do equilíbrio populacional, com pouco mais de dois filhos por mulher. Mas as estatísticas refletem a média, e as médias podem ser traiçoeiras...”.
Em seu livro Cidade Febril, Sidney Chalhoub resume a visão da elite no auge do higienismo no Brasil "(...)os pobres passaram a representar perigo de contágio no sentido literal mesmo. Os intelectuais médicos grassavam nesta época como miasmas na putrefação, ou como economistas em tempo de inflação: analisavam a “realidade”, faziam seus diagnósticos, prescreviam a cura, e estavam sempre inabalavelmente convencidos de que os hábitos de moradia dos pobres eram nocivos à sociedade, e isto porque as habitações coletivas seriam focos de irradiação de epidemias, além de, naturalmente, terrenos férteis para a propagação de vícios de todos os tipos(...)".

Incorporados à administração estatal, os preconceito perduram até os dias de hoje

Quando se trata de formular políticas públicas de saúde, a favela é onde, supostamente, há um descontrole demográfico, apesar de as estatísticas oficiais negarem. “A Favela Jardim Edith, em São Paulo, é cheia de crianças. Construídas quase na rua, as casas de madeira e papelão ocupam toda a calçada de uma das avenidas mais movimentadas da cidade.” [2]
Inspirados pelos ideais da medicina social, como aponta Michel Foucalt, e o papel da intelecualidade na formação da superestrura do Estado, como sugere Gramsci, os médicos foram incorporados à administração estatal e auxiliaram na legitimação científica e moral das ações.
Como intelectuais e detentores dos conhecimentos das ciências naturais, não poderiam ser contestados em plena era da razão e da ciência. O que se seguiu foram ações que modificaram profundamente, além da paisagem urbana, também as relações do Estado com a população da nova sociedade em formação.

No Brasil, as desigualdades sociais e o racismo possuem um ponto de partida semelhante. Isso possibilita uma investigação a partir da construção dos pressupostos eugenistas e higienistas que colocaram os negros e seus descententes em uma escala de inferioridade social. Para conduzir tal processo, o papel do pensamento biologizado difundido pelos intelectuais, principalmente os médicos, é sentido até os dias atuais.

[1] Thomas Malthus trabalhou sob as “leis” da inevitabilidade biológica de uma superpopulação humana e afirma que a economia do século 19 não daria conta de prover os meios necessários para alimentar todos.

[2] Ver em http://drauziovarella.ig.com.br

Alexandre Machado Rosa