segunda-feira, 12 de novembro de 2007

Copa do Mundo no Brasil, para além do debate econômico

Para antropólogos, torneio expõe a apropriação da paixão pelo futebol como instrumento de dominação

“A realização da Copa do Mundo de futebol no Brasil constitui um evento cuja força escapa a toda e qualquer tentativa de domesticação política”, pondera José Paulo Florenzano, antropólogo da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP), antes que surja qualquer argumento que reforce a antiga idéia, a saber, “futebol é alienação”. Para Florenzano, a Copa comporta riscos simbólicos para as instâncias de poder que sonham em manipulá-la em proveito próprio; expõe a todos os perigos o discurso televisivo que pretende imprimir-lhe uma significação nacionalista-patriótica; e possui uma dinâmica que pode cimentar a unidade nacional, tanto quanto, inversamente, expor as fraturas do corpo social.

Tudo o que organização da Copa de 2014 não quer é expor tal fratura. Comemorada, em viagem à Suíça no dia 30 de outubro por cartolas, governadores e até pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a confirmação de que o evento será realizado no Brasil pode ser um risco para a elite.

Mas ela pensa à frente. Por que não transformar a paixão pelo esporte em ufanismo?

De acordo com Luiz Henrique de Toledo (o Kike), antropólogo da Universidade de São Paulo (USP), será uma boa oportunidade para avaliar o significado da seleção brasileira, “valor tão atacado e fustigado em tempos de globalização de times e selecionados”.

Para a antropóloga Bernadete Castro Oliveira, da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Rio Claro, a “paixão” pelos clubes é manipulada pela mídia em prol da idéia de um selecionado que represente um “Brasil homogêneo”. “Todo o brasileiro tem uma paixão por um time. Do ponto de vista antropológico, o time funciona como se fosse um clã, reúne os indivíduos por um sentimento, por um ideal comum. Na seleção, se toma essa sensação de clã para um ideal manipulado de naçãoh, explica. Assim, para ela, a identidade é transportada de um plano para outro que, de certa maneira, vai servir como uma apropriação do povo pela elite, por meio da mídia.

Dominação
“(O futebol) se tornou um instrumento de dominação. Na década de 1970, por exemplo, o Estado autoritário tentou forçar a construção de um imaginário de povo-nação por meio da seleção”, lembra Bernadete.

Kike reforça esse pensamento. Para ele, a identidade não é uma representação que se sustenta por si mesma, “antes de tudo é projeto político de grupos, de elites, dos governos que se sucedem. Mas acho que, nos últimos tempos, houve pouca instrumentalização do futebol como o maior índice identitário”.

Mesmo com toda a força da mídia, a tentativa de homogeneizar o povo brasileiro não “fez gol”.

“O futebol não pode ser culpado pelas rixas, essas têm a ver com processos históricos e políticos mais complexos que, de vez em quando, destilam pelo futebol tais rivalidades regionais, mas não vejo como uma Copa do Mundo, um evento episódico, possa fazer da nação um corpo político e cultural homogêneo”, aponta Kike

Mais. O antropólogo da USP não acredita nesse tipo de identidade homogênea: “é ingenuidade pensar assim”. E provoca. “A pergunta é, o futebol é amado por muitos povos e por que só aqui insistimos que ele seja um dos índices de identidade, será que isso se repete na Alemanha, Itália e etc. a despeito da sua enorme popularidade? Popularidade e símbolo de identidade nem sempre estão associados. Nós queremos que seja, pelo enquanto (estiver ganhando)”.

Brasilidade
Na Copa, a brasilidade pode ser reatualizada. “Simbolicamente, o futebol nos diz algo daquilo que convencionalmente chamamos de brasilidade, mas isso também não é algo mecânico e a-histórico, para isso tem que ser reatualizado, ritualizado, reproduzido e reproduzindo seus jogadores, seus especialistas e continuar sendo um fenômeno midiático, outro elemento fundamental para que qualquer fenômeno ganhe modernamente esse status de signo identitário”, afirma Kike.

Noves fora o patriotismo “idiotizado” pela mídia, o fato é que a imagem do brasileiro está sempre ligada ao futebol. “Uma coisa é Copa do Mundo, outra coisa é o futebol”. Essa foi a primeira frase do meia Sócrates em entrevista ao Brasil de Fato. Com Magrão o papo é reto. “Futebol é essência. É o exercício dessa prática. Outra coisa é a Copa, que é um negócio, onde tem um 'monte de ladrão roubando dinheiro'”, afirma, sem rodeios, um dos grandes ídolos do futebol brasileiro.

Outro ícone da seleção brasileira, o atacante Tostão acredita que a festa de 2014 será um motivo de congraçamento dos Estados brasileiros e de unificação do conceito de pátria. “Isso é bom, desde que não seja uma coisa ufanista, de glorificar algo que não é para glorificar e iludir as pessoas”, afirma.
Eduardo Sales de Lima

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