quinta-feira, 1 de novembro de 2007

As Tropas das Elites

EM MEIO a acirradas polêmicas e uma efervescente projeção na mídia, estreou nos cinemas do Rio e São Paulo o filme “Tropa de Elite”, de José Padilha, cujo maior mérito, pelo visto, foi saber explorar como poucos o caótico quadro de (in)segurança pública nos grandes centros urbanos de Bruzundangas. A produção já era conhecida do grande público bem antes do seu lançamento, graças à onda de DVDs piratas que os incansáveis camelôs venderam Brasil afora antes da estréia oficial (uma pesquisa do Datafolha afirma que 19% dos paulistanos já tinham visto a obra antes da estréia). Em cena, o Bope – a tropa da PM que invade as favelas com o temível Caveirão –, um vilão que já posa de herói no turbulento imaginário da classe média, sempre repleto de ícones de Hollywood B. Não resta dúvida de que o tema virou comoção nacional. E, quando os bobos da corte se revoltam – como fez Luciano Huck, que clamou pelo Bope depois que roubaram seu singelo Rolex dourado nas ruas de Sampa –, a histeria só tende a crescer. Contudo, tratemos de recorrer ao crivo da razão para não sucumbir de vez à barbárie neoliberal.

Em primeiro lugar, é absolutamente impossível comparar o atual quadro de violência social com aquele que existia nos primeiros anos da ditadura militar, em que a vertiginosa transfiguração da fisionomia espacial do país – para a qual concorriam o surto de industrialização, a expansão da “fronteira agrícola” e o êxodo crescente dos lavradores espoliados pelos grandes proprietários – já criava imensos bolsões de excluídos nas entranhas das metrópoles, conforme tão bem nos ilustram as páginas de nossa literatura, desde a prosa contundente de Graciliano Ramos em Vidas Secas, ou o antológico poema “Morte e Vida Severina”, de João Cabral de Melo Neto, até o recente romance Cidade de Deus, de Paulo Lins. Nos cárceres da ditadura, por sinal, quadros das organizações de esquerda travaram um precário contato com alguns cérebros da criminalidade comum, o que teria inspirado a criação de facções criminosas articuladas sob o molde dos partidos clandestinos, com uma estrutura piramidal típica do centralismo democrático leninista. Segundo nos relatam escritores como José Louzeiro, autor de “Lúcio Flávio, o passageiro da agonia”, assim teria surgido o famoso Comando Vermelho nas prisões do Rio de Janeiro, com o sugestivo lema de “Justiça, paz e liberdade”. Hoje, porém, na hipertrofiada sociedade de consumo que medrou à sombra de nosso capitalismo periférico, não há lugar para qualquer Robin Hood tropical. O narcotráfico, bem o sabemos, opera sob a lógica corporativa do capital, sem nenhum laivo de ética ou idealismo social. E se Brasília não dá exemplo de comportamento gregário, nem os varejistas das drogas, espalhados entre o morro e o asfalto, tampouco os atacadistas, comodamente instalados à beiramar, conhecem algum código de honra... Não idealizemos, pois, a bandidagem (do asfalto ou do Planalto), que deve ser punida com o rigor da lei. Da mesma forma, ninguém se iluda com o aparato de repressão estatal. Quando os sem-teto de Recife saem às ruas em busca de solução para o drama da moradia popular nas cidades, cujas Secretarias de Habitação em geral são invadidas pelos magnatas da especulação imobiliária, lá está a PM, pronta para dispersá-los. Enquanto o governador tucano José Serra, para alegria dos fazendeiros, propõe equacionar o conflito fundiário no Pontal do Paranapanema mediante a regularização a toque de caixa de vastos hectares de terras griladas, não faltam tropas da PM para acossar os sem-terra que continuam a resistir à avassaladora expansão do agronegócio em plagas tupiniquins. E até mesmo quando a fazenda de FHC, o sociólogo dos príncipes, foi ameaçada de ocupação pelo MST, para lá acorreram os tanques do Exército, a fim de “dissuadir” os lavradores de qualquer ação mais incisiva contra o “patrimônio” de um típico coronel da pós-modernidade tropical. Por isso, uma velha questão ecoa em Bruzundangas: a quem servem as tropas das elites?

Luiz Ricardo Leitão é escritor e professor adjunto da UERJ. Doutor em literatura latino-americana pela Universidade de La Habana, é autor de Lima Barreto: o rebelde imprescindível (Editora Expressão Popular).

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