sexta-feira, 4 de janeiro de 2008

2007: a profecia se fez como previsto

Há uma década, os Racionais lançavam Sobrevivendo no Inferno, seu CD-Manifesto. O rap vale mais que uma metralhadora. Os quatro pretos periféricos demarcaram um território, mostrando que as quebradas são capazes de inverter o jogo, e o ácido da poesia pode corroer o sistema

Uma década se passou e a profecia anunciada pelos Racionais MC’s vem se confirmando a cada ano. Em 1997, Mano Brown, Ice Blue, Edy Rock e KL Jay trouxeram ao mundo uma obra que marcou o rap nacional em definitivo e lançou as bases do que, hoje, chamamos de Cultura de Periferia. Estou falando do CD Sobrevivendo no Inferno. Esse disco alçou o grupo à condição de maior representante, no Brasil, de um gênero musical que renovou a música no planeta. Pode observar. Quando algum artista quer dar uma roupagem moderna às suas canções, o produtor bota lá uns scratches, faz uma colagem com letras de rap ou tenta copiar os manos que dominam a composição rimada e ritmada do rythman and poetry.

Mas a qualidade artística de Sobrevivendo no Inferno é apenas um lado desse marco. O CD é um manifesto. Do começo ao fim, canção por canção, os Racionais vão compondo a carta de intenções do gueto. Uma declaração de revolta — revide de quatro sobreviventes. Suas armas? O rap que vale mais do que uma rajada de metralhadora. Com seu “verso violentamente pacífico” os quatro pretos periféricos demarcaram um território, até então, definido apenas pela concentração da pobreza, violência e descaso das autoridades.

Nesse disco, os Racionais mostraram uma periferia poderosa, capaz de reverter o jogo. Uma periferia altiva, consciente de sua condição social e do quanto lhe foi negado. Um povo que, durante décadas, foi amontoado nos arrabaldes, volta-se agora contra os que a empurraram pro gueto. “A fúria negra ressuscita outra vez…”, anuncia Mano Brown. E vestidos com “as roupas e armas de Jorge”, esses quatro jovens, na faixa dos 27 anos, convocavam, na época, todo povo pobre do Brasil. “Periferia é periferia em qualquer lugar”, dizia Edy Rock em inspirada canção. Estava decretado o orgulho e a exaltação do ser periférico.

Com mais de 1 milhão de discos vendidos oficialmente (e, pelo menos, a mesma quantidade reproduzida, digamos, extra-oficialmente...), esse poderoso manifesto, até hoje, cala profundamente e ainda vai influenciar multidões. Os Racionais mostraram que a poesia pode corroer o sistema, constranger as elites. Um ano depois de lançar o Sobrevivendo no Inferno, o grupo ganhou o Vídeo Music Award da MTV com o clipe da canção mais famosa do disco — Diário de um Detento. Surpreendendo a todos, ao aparecer para receber o troféu Mano Brown disparou: “dedico este prêmio a minha mãe que me criou lavando muita roupa suja de playboys como vocês…”.

Não, Mano, o sistema não está sob teus pés. Mas a periferia tornou-se altiva, admirada, consicente de sua condição e do quanto lhe foi negado

Em uma das faixas do CD, a que mais gosto, Estou ouvindo alguém me chamar, a letra fala de um jovem que se inicia no mundo do crime. Seu batismo foi num assalto a uma butique do Itaim. “Todo mundo pro chão, pro chão, o cofre já estava aberto, o vigia tentou ser mais esperto…”, e por aí vai. Em tom reflexivo, vem conclusão dessa parte da história: “Pela primeira vez eu vi o sistema aos meus pés, apavorei, desempenho nota 10”. Imagino que o Mano Brown e seus amigos, diante daquela platéia de brancos bem-nascidos no evento da MTV, tenham pensado o mesmo. De repente, diante dele, centenas rapazes e moças de bochecha rosada aplaudindo-o por ter feito um clipe falando do massacre de 111 presos, quase todos pretos, todos pobres, gente encarada pelo Estado como entulho. Não, Mano Brown, o sistema ainda não está sob seus pés. Como você próprio diz, és um “efeito colateral que seu sistema fez…”. Mas os Racionais abriram um caminho. Como é dito no CD/Manifesto: “eu sou apenas um rapaz latino-americano apoiado por mais de 50 mil mano…”.

Penso que a “base social” dos Racionais tenha multiplicado- se pelo menos dez vezes. Depois de Sobrevivendo no Inferno, veio o Ferrés, mostrando que na Favela tem escritor de qualidade. Surgiram o Samba da Vela, o Sarau da Cooperifa e outros tantos movimentos que engrandecem a periferia. A última canção do disco chama-se Salve. Nela, os músicos dos Racionais citam mais de 60 quebradas: Jardim Ângela, Jardim Ebrom, Vaz de Lima, Vila Calu, Grajaú, Cidade Tiradentes, São Mateus, Brasilândia etc. São regiões da metrópole paulistana que só apareciam nas páginas policiais e nos registros dos detentos nas delegacias e no extinto Carandiru. Mas hoje, caros racionais, graças ao talento e à firmeza ideológica, para usar uma expressão cara ao MST, de artistas como vocês, esses bairros periféricos aparecem, cada vez mais, como redutos de uma arte original, bela e comovente.

Não por acaso surgiu a Agenda Cultural da Periferia. O movimento cultural já justifica um Guia próprio. Uma novidade surgida em 2007 que nos enche de orgulho. De São Mateus, vem o melhor disco de samba do ano com o registro fonográfico do Berço do Samba de São Mateus. Um dos projetos literários mais interessantes do ano é a Coleção Literatura Periférica, da Global Editora, que trouxe, nos três primeiros volumes lançados neste ano, Sergio Vaz, Sacolinha e Alessandro Buzo. O Sacolinha já foi escolhido para a Jornada Literária de Passo Fundo do ano que vem. O Vaz recebeu proposta para traduzir sua obra na França. O Buzo logo será assediado por cineastas em busca de uma história original, veloz e instigante. E para 2008 teremos mais.
Dez anos depois, a profecia se cumpre outra vez. Neste grande ano, o exemplo maior, entre tantos outros, da força da cultura suburbana, foi a realização da Semana de Arte Moderna da Periferia, realizada em novembro, liderada pelo Sarau da Cooperifa. Nesse evento, o povo do gueto mostrou bem o que diz o belo samba interpretado por Beth Carvalho: “da fruta que eles gostam, eu como até o caroço…”. Salve Racionais MC’s. Salve Periferia. Que 2008 tenha muito mais arte. Não tenho dúvida. Por meio da cultura, pode-se virar o jogo.
Eleilson Leite é colunista do Caderno Brasil de Le Monde Diplomatique. Edições anteriores da coluna: