quarta-feira, 5 de março de 2008

Uma crônica sem cartões

ABRIMOS OS jornais e, afora o copioso noticiário policial ou os calorosos eventos esportivos, só logramos ler caudalosas matérias sobre o uso nebuloso – ou seja, o abuso – dos famosos cartões corporativos da União e do governo paulista (isto é, as tchurmas de Alckmin & Serra), ou então a extensa e quase apaixonada cobertura que os repórteres da colônia realizam sobre as convenções primárias de democratas e republicanos para a escolha dos delegados que definirão os candidatos dos maiores partidos ianques à sucessão do malsinado George W. Bush.

Sobre o primeiro tema, cronistas mais célebres do que este escriba, como os mestres Veríssimo e Cony, já se pronunciaram com muita verve e humor na grande imprensa tupiniquim. Quanto ao segundo, julgo até compreensível o interesse exagerado da mídia, já que a aguda crise do império do Norte anda a preocupar bolsas & mercados – e sabe-se lá se todos eles ainda terão emprego ao final do presente ciclo, que se caracteriza não só por uma visível retração da economia, como também por um profundo desgaste no cenário internacional, após as malogradas invasões ao Iraque e Afeganistão. Obama e/ou Hillary não resolverão nada, posso assegurar-lhes, mas oxalá a malta de W. Bush & Dick Cheney volte para o banco de reservas ao longo dos próximos anos.

Em meio a esse duopólio da pauta, uma notícia, porém, desperta singular interesse. Trata-se de uma pesquisa coordenada por Ian Rowlands, da University College de Londres, acerca do “Comportamento Informativo do Pesquisador do Futuro”. Em outras palavras, um estudo sobre o suposto mito de que a geração nascida após 1993, mais habituada aos mecanismos digitais, teria maior facilidade em lidar com o mundo virtual e obter informações por meio de ferramentas de busca eletrônica como o Google ou Yahoo. Uma das conclusões mais severas da pesquisa, segundo enuncia o professor inglês, é que “a sociedade está emburrecendo”. Ao consultar portais com dados relevantes (como a Biblioteca Britânica e outros), acadêmicos mais jovens e até mesmo doutores mais experientes “passam os olhos por títulos, índices e resumos vorazmente, sem leitura real”.

Obviamente, há quem discorde dessas avaliações. Um professor da UFMG reconhece que o Google privilegia certas páginas em detrimento de outras, e que os alunos não sabem discernir um portal de artigos acadêmicos do “blog do Joãozinho” – e, pior, são capazes de citar o blog sem o menor pudor, já que lhes falta “juízo de valor”. Contudo, não seria a Internet a responsável por tal tendência: agia-se da mesma forma “quando pesquisávamos nas enciclopédias”, ele adverte; “o que mudou foi a oferta de informação”. A ferramenta eletrônica, como qualquer outra, aliás, apresenta riscos e vantagens. Basta evocar o caso da televisão, cuja difusão entre nós, a partir de 1950, sob os auspícios de Tio Sam, revelou talentos notáveis, mas também se prestou aos mais perniciosos desígnios, que o digam os Robertos Marinhos e Bispos Macedos das nossas “cadeias nacionais”.

O perigo maior, pois, é torná-la um mero fetiche, esquecendo- se do essencial em qualquer processo civilizatório ou regime social: quem controla essa ferramenta? Ou, parafraseando o velho e sábio Marx, quem é o proprietário desse “instrumento” de produção? Não há dúvida de que o meio eletrônico é um suporte básico para o atual estágio ‘biocibernético’ de acumulação do capital, assim como a máquina a vapor ou o motor a combustão são ícones vitais do capitalismo industrial. Mas ele não deve ser naturalizado como uma prerrogativa inata e exclusiva do capital. A luta em favor da inclusão digital e pela mais ampla democratização do acesso ao universo eletrônico está na pauta dos movimentos sociais em todo o planeta. Conquistemos e socializemos essa arma criada pelo inimigo. Lembremos, uma vez mais, as lições de Macunaíma e dos antropófagos de Bruzundangas: “devorar” o outro e digeri-lo, para assimilar sua força e engenhosidade.

Luiz Ricardo Leitão é escritor e professor adjunto da UERJ. Doutor em Literatura Latino-americana pela Universidade de La Habana, é autor de Lima Barreto: o rebelde imprescindível (Editora Expressão Popular).

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