quarta-feira, 5 de março de 2008

Os milionários de Bruzundangas

UMA ‘COLUNISTA social’ da grande imprensa paulistana, bastante afeita à rotina da burguesia tupiniquim, publicou em 2007 uma longa crônica acerca de alguns hábitos cultivados pelos milionários da província. A matéria, obviamente, confere aos “muito ricos” uma aura de poder e superioridade que só as grandes fortunas logram cultivar: eles não se misturam à plebe ignara, nem sequer são vistos nas ruas, lojas ou joalherias; ao contrário, “são elas que vão até eles – muito mais prático”, escreve, deslumbrada, a (pseudo)jornalista. Em compensação, adoram “brincar de pobres” e costumam passar as férias em uma casa simples, mas bastante confortável, “numa praia ainda não descoberta do Nordeste” (decerto a região-símbolo da pobreza nacional, deve supor a colunista).

O mito composto pela crônica vai mais além. Ela se preocupa em consignar que “os muito ricos não ostentam”: seus carros costumam ser “pretos, de marca indefinida” e nunca são novos ou “do ano”; as dondocas multimilionárias, por sua vez, não usam roupas ou acessórios ‘identificáveis’ e têm costureiros exclusivos, que só elas conhecem e que tampouco fazem questão de aparecer nas revistas de modas, para que suas criações não se ‘vulgarizem’ na mídia ou na fogueira de vaidades dos artistas. Os realmente ricos, insiste o artigo, “não falam de moda nem de consumo”, e o vinho servido em suas mesas é tão excepcional que vem em garrafas de cristal, sem registro de ano ou origem, pois, afinal, não é preciso...

A peça laudatória se encerra com curiosas observações sobre a vida íntima dos casais milhardários, que, afiança a cronista, dormem em cômodos separados, só saem dos seus quartos vestidos a rigor e sempre se tratam com a maior cerimônia. O texto nos adverte, por fi m, a título de pedigree, que homens e mulheres “muito ricos mesmo” têm uma coisa em comum: eles jamais dão uma gargalhada; no máximo, sorriem... Isso tudo foi escrito em outubro, meu caro leitor. Agora em janeiro, uma pesquisa internacional revelou que, além de ser um dos países em que o número de milionários mais cresce, o Brasil é o segundo na lista das nações onde as fortunas se multiplicam mais rapidamente. Afora isso, dados dos consultores especializados atestam que o comércio de luxo cresceu 17% por aqui em 2007, com uma explosão de vendas de carros de marca, jatos executivos e helicópteros (só para o leitor ter uma idéia, o preço de um Range Rover Vogue é R$ 390 mil, e o de um BMW 760 chega a R$ 700 mil...).

Toda essa desfaçatez reunida me fez lembrar o notável Lima Barreto e sua viagem ficcional à imaginária República de Bruzundangas, cuja elite era formada por latifundiários que viviam nas cidades, “gastando à larga, levando vida de nababos e com fumaças de aristocratas”.

Quando o café não lhes dava o bastante “para as suas imponências e as da família”, começavam a clamar que o país iria à bancarrota, que era preciso salvar a lavoura, pois o café era o esteio do país; e — zás — arranjavam “meios e modos de o governo central decretar um empréstimo de milhões para valorizar o produto”. O único detalhe é que o genial romancista carioca escreveu essa sátira no início do século XX, quase cem anos antes desta pós-modernidade neoliberal que o grande capital transnacional nos impôs. Talvez tenha mudado o cenário ou alguns figurinos; houve algum arranjo no enredo, decerto, transposto para o novo milênio – mas o leitor mais atento com certeza está a reconhecer que o nosso drama, em essência, pouco ou nada mudou.

Sim, caríssimos leitores: carrancuda ou risonha, regada a vinho ou a café, Bruzundangas é aqui; Bruzundangas é agora.

Luiz Ricardo Leitão é escritor e professor adjunto da UERJ. Doutor em Literatura Latino-americana pela Universidade de La Habana, é autor de Lima Barreto: o rebelde imprescindível (Editora Expressão Popular)

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